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terça-feira, 26 de julho de 2016

Natalia, uma história verdadeira!


No começo do século passado, nasceu no dia de Natal uma menina, filha de uma brasileira prática ao ponto de poder ser considerada fria e de um uruguaio com fama de bom peleador, de sobrenome Cardozo. 

Essa menina recebeu seu nome em alusão a sua data de nascimento, "Natalia", e mesmo herdando o sobrenome do pai, como foi registrada no Brasil, seu sobrenome sofreu uma pequena alteração, virou Cardoso com "s", desse modo, a menina foi registrada aos 13 anos de idade, como se tivesse 15, porque sua mãe queria que ela casasse com um homem muito mais velho, e esta era a idade mínima para firmar matrimônio no Brasil naquela época. Hoje vou contar um pouco sobre essa menina chamada Natalia Cardoso.

Gervasio Cardozo, o pai da pequena Natalia morreu jovem, segundo dizem pego de traição (foi esfaqueado pelas costas) durante uma briga. A mãe de Natalia não tinha lá grande vocação pra maternidade e entregou a menina para sua mãe, a vó de Natalia se chamava Vicentina Simões Torretz e foi quem ensinou tudo a menina: costurar, cozinhar, rezar... A "vó Vicentina" era muito mística, mas muito católica, na verdade ela não fazia ideia que era mística.. Simplesmente tinha suas crenças de afastar o mal, mandando-o "pras areia do mar salgado", ou dizendo quando se derrubava algo branco, como açúcar "é branco, minha filha, é alegria!", e mesmo com todas as dificuldades financeiras, quando algo quebrava em casa, advertia "foi o mal que se quebrou".

A infância breve de Natalia não teve luxo, sua vó costurava "pra fora", para auferir renda, bem como trabalhava em casas de família, viúva, com a neta pra criar, utilizava os conhecimentos de moça de boa família para garantir o sustento. Ainda havia uma parte da família que era rica, muito rica, mas disso falaremos depois. Anos mais tarde, Natalia contava que sua infância coincidiu com um período truculento da história da hoje conhecida como Fronteira da Paz, (Santana do Livramento foi palco de revoltas, de degolas, de barbáries, que arrancaram duras criticas de José Hernandez, autor do clássico Martin Fierro), sua avó vendo a proximidade de soldados, trancou a menina num grande baú que tinha aos pés da cama que elas dividiam e mandou, com uma determinação que jamais se repetiu, que a menina ficasse totalmente quieta, calada, independentemente de qualquer barulho ou do tempo que passasse. Natalia ouviu os soldados indagando pela guria que eles sabiam que ali vivia, dona Vicentina garantiu que vivia só... Quando, muito tempo depois a vó de Natalia abriu o baú, a casa estava toda desordenada, varias coisas quebradas, haviam levado a comida e dona Vicentina foi, aos prantos para a sanga banhar-se, "e enquanto se esfregava chorava, chorava..." Natalia disse que só depois de muitos anos entendeu o que havia se passado.

Como já adiantei, por vontade da mãe, Natalia casou-se aos 13 anos com um homem muito mais velho. Na noite de núpcias ele ordenou que a menina tirasse toda a roupa e se deitasse na cama, ela tomada pelo pavor obedeceu, imaginando que ele iria bater nela, infelizmente a inocência da menina não a protegeu de um desfecho ainda pior... Esse homem, de sobrenome Cruz foi muito malvado, mesmo! Só para exemplificar, ele tomou uma filha deles, logo após o nascimento, sem permitir que Natalia segurasse a criança em seu colo ao menos uma vez e deu a criança para outra Família criar, sob os protestos de Natalia, instantes após dar a luz, a menina foi levada e jamais recuperada... Contando essa criança, Natalia teve 3 filhos com esse Cruz. O casamento, pra toda sorte acabou... Como se não bastasse tudo, ele andava incentivando os amigos do carteado a "se aproximarem" da própria esposa. Natalia lutou, literalmente e antes que algo pior acontecesse foi embora com uma filha, o rapazinho mais velho, Cruz não permitiu que partisse, e submeteu esse menino a uma vida de castigos que o tornariam uma pessoa muito dura, quando adulto.

Natalia buscou abrigo junto a sua adorada avó, que estava trabalhando na estancia de um parente rico, que vinha a ser primo distante de Natalia, o moço tinha talento pra pecuária, era bonito, gentil, educado, o oposto do velho repugnante com quem Natalia havia sido casada. Natalia era muito jovem, uma menina, bonita, cabelo cacheado, expressivos olhos castanhos, formas arredondadas, longos braços, rosto bem desenhado. Natalia foi morar com a avó e logo o interesse entre ela e o moço, chamado Argemiro Simões Moreira cresceu, reconhecendo as virtudes de Natalia, o jovem estancieiro propôs "casamento", (mesmo que no papel Natalia ainda fosse casada com o "Cruz credo"), e a menina Natalia virou a "patroinha" do Rancho do Felício.

Ela enfim foi feliz! Argemiro tratava a filha de Natalia, fruto de seu primeiro casamento como filha dele, sendo que esta filha, Elizabeth, ajudou ativamente Natalia a cuidar dos muitos filhos do casal que viriam: Neusa, Nelson, Natalina, Neide, Nelma, Nilza, Maria do Carmo, José Florindo, Angela e Luiz Eduardo. No Felício as crianças tiveram a infância mais sadia possível. De tristeza desta época, Natalia só me revelou que jamais se esquecia de uma filha que morreu logo após o parto, uma menina muito bonita e gorda, ela sempre ressaltava, e outro filho que morreu, este chegou a ser batizado com o nome do avô materno e do santo padroeiro do dia do nascimento, Gervasio Sebastião, era gêmeo do caçula Luiz, só vi Natalia chorar falando nisso, em nada mais. 

Natalia grávida, junto dos filhos mais velhos e uma amiga


Natalia sempre me falou maravilhas de Argemiro, "meu grande amor!", dizia ela. Autodidata, Natalia aprendeu a ler e escrever muito bem tinha uma letra muito bonita, se comunicava bem, usava expressões que hoje eu utilizo apenas quando quero impressionar alguém! Ela adorava contar uma história, que o Argemiro havia pedido para ela lhe buscar uma revista cujo título era em inglês (Life) e ela ficou nervosa, porque não queria "perder" para o marido, mas que conseguiu rapidamente identificar o exemplar, causando admiração no seu amado!

O grande amor de Natalia..

Ela nunca me contou, que eu lembre, onde aprendeu a tocar gaita de boca, embora essa seja uma das lembranças mais alegres que tenho dela, mais que isso só lidar com o jardim, mexer nos sapos de estimação, cuidar da corujinha, (ela, como sua vó Vicentina também era mística sem saber, e muito católica!). Lembro-me dela abrindo um porta-joias amarelo, em formato de coração e me dizendo mostrando uma pulseira: quando tu fizer 15 anos a vó vai colocar essa pulseira em ti, minha rica filhinha, (esse era o jeitinho dela!) e guardava novamente a pulseira de ouro, no coração amarelo e cheio de fitas.

Minha avó, Natalia Cardoso morreu de câncer, quando eu tinha 8 anos, a pulseira nunca chegou ao meu pulso, mas isso não importa. Era um sonho dela, e sonhos são pra sempre!



Talvez muita gente discorde dos fatos que relato aqui, mas tudo me foi contado por ela, obviamente interpretado por mim. Ela me ensinou a pregar botão, fazer boneca de pano e de milho, a rezar, a ter sempre um lenço e uma caneta, a respeitar os mais velhos, a ajudar a família, me ensinou como transferir uma planta de um pote para a terra, a ter compaixão pelas pessoas e animais, a lembrar da letra do Hino Nacional, naquela parte em que todos se confundem ela me ensinou: lembra que primeiro vem o "sonho" depois o "amor", "Brasil um SONHO intenso... Brasil de AMOR eterno seja símbolo"..

Trago essas memórias à tona porque eu queria tanto que a minha vó Natalia estivesse na minha formatura... Eu consigo ver que meu diploma começou a ser conquistado há muito tempo, nos sonhos e atitudes dessa mulher inigualável, cujas escolhas foram determinantes para hoje eu viver isso.


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